Livre interpretação das Escrituras, justificação pela fé somente, sacerdócio universal de todos/as os/as crentes. São esses os principais pilares da Reforma Protestante histórica, que redesenharam o todo da fé cristã, cobrindo da doutrina à experiência, do culto à linguagem, do estilo às estéticas, dos significados às práticas. Sobrou alguma coisa? Muito, mas também pouco!
Com o espírito da Reforma ocorrida na Europa, o cristianismo voltou a experimentar o que nasceu para ser: um movimento do povo de Deus, cuja centralidade resida em Cristo e que, em seu esforço intuitivo, mas não menos deliberado, cônscio, objetivado e organizado pela e para a missão cristã, buscou construir novas culturas, formas, significados e prá- ticas mais satisfatórias (1).
Na América Latina experimentou-se uma história dramaticamente diferente. Marcada por 300 anos de domínio católico romano, ficou sem exposição significativa ao desenvolvimento da Reforma. Percebe-se, todavia, que ainda hoje os/as participantes das igrejas herdeiras da Reforma, chegadas mais tarde à América Latina, continuam à busca de espaços para a livre expressão de anseios do povo de Deus: revitalizar a fé, torná-la menos institucional, mais íntima e mais orientada pela missão de fazer discípulos/as de Jesus Cristo para a transformação da realidade e do mundo.
O protestantismo é vocacionado à inovação. Reinvenção e recriação estão no cerne do que ele é. Daí a ideia de “reforma, sempre se reformando” que, mais que um jargão ou receita para a continuidade criativa, é condição para a sua sobrevivência.
Ocorre, contudo, que hoje, no Brasil, diante do estado deplorável em que se encontram alguns dos ramos do protestantismo, essa natureza inovadora hospeda exacerbações e descarrilamentos de conteúdos e projetos, e fertiliza o surgimento dos mais diversos “esquisitismos” teológicos e eclesiológicos. As igrejas histó- ricas foram e continuam sendo violadas por valores, teologias e práticas neopentecostais que, no mínimo, relativizaram valores fundamentais da Reforma e da pós-Reforma, gerando um novo protestantismo desmemoriado, desreformado, desconectado, desorientado e, assim, deformado em sua identidade, confiança, elasticidade histórica e participação construtiva na sociedade.
Politizar agendas pessoais em todos os níveis da nação e da igreja, importar pacotes que pouco ou nada têm a ver com aquilo que nascemos para ser, engessar o movimento com metodologias estanques, focar em resultados numéricos, legitimar e perpetuar injustiças, experimentar a fé enquanto bem de consumo, fazer encampação ideológica de instituições, recrudescer fundamentalismos disfarçados por tecnologia e mí- dia, controlar os/as desinformados/as e privá-los/as do acesso ao conhecimento que conscientiza e liberta, promover relações de intolerância, discriminar os/ as que agem e pensam diferentemente, enfim... Tudo, ou parte disso, se já não é, está quase se tornando a-tabuada-nossa-de- -cada-dia. Ora, isso é evidência de sermos continuadores/ as, sucessores/as ou herdeiros/ as da Reforma? Não. A Reforma Protestante não se prestou, nem se presta a essas coisas.
A igreja não pode dar-se ao luxo de querer ter mais do mesmo, notadamente no que se refere à sua natureza traduzida em formatação estrutural. Reforma é a simplicidade da essência vencendo complexidades anacrônicas. Acréscimos institucionais de funções ou status eclesiásticos pouco ou nada contribuirão para a infusão de vida desejada pelo movimento do povo de Deus.
Repensar a igreja a partir da Reforma é revermos a nós mesmos/as: nossas origens, sentido, propósito, motivo, relações e práticas. De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Antes e depois de tudo, é redescobrir as essências, confiar no Senhor e no Seu Espírito, deixando que surja um novo consenso quanto a ser igreja bíblica e missional hoje: trinitária, encarnada, leiga, simples, servidora e relevante.
(1) Do material e conclusões de Anthony F. C. Wallace, que investigou centenas de movimentos de revitalização em geral, não somente religiosos, incluindo os movimentos de origem do cristianismo, a Reforma e o próprio metodismo sob John Wesley.
* Pr. Luís Wesley de Souza Candler School of Theology, Emory University. Este artigo foi originalmente publicado em o Expositor Cristão. Para ler o texto original abra o seguinte link: http://www.metodista.org.br/content/interfaces/cms/userfiles/files/expositor-cristao/expositor-cristao2014/Expositor%20Cristao%20Outubro%202015.pdf